20 janeiro 2006

Pertencimento

eu não pertenço
nunca consegui pertencer
a nada

eu entro
sem me jogar
dentro
eu saio
sem me projetar
fora

eu penso
um pensar de esquecer
tudo
iludo
a ilusão de estar


junto

18 janeiro 2006

A Espiral

o tempo circula, sem fim, nos infinitos
tange, marca
e circunda cada coisa
abrindo um abismo em tudo o que é sentido

as esferas vão saindo umas de dentro
das outras
e a espiral da vida não alcança o céu
não alcança nada!


descobre, no vazio,
que o mistério está pronto

para ser vivido

17 janeiro 2006

Espelhos dos Meus Olhos

quebrar os espelhos dos meus olhos
ter inteiros os pedaços dos meus sonhos
em lâminas

quebrados de milagres que não eram, nunca foram
mas eu quis

montar os pedaços dos meus sonhos
viver das miragens que tiveram

A Moto

eu sigo agora o pensamento de um homem
estacionando a sua moto
a rota presumível do corpo da moto
no cérebro do homem
que vê no corpo do espaço
a exata conformidade da moto

os olhos medem a vaga
a vaga convida a moto
as mãos convertem a roda
as pernas são alavancas

encaixe mais que preciso
da moto tomando jeito
na vaga do pensamento

meu Deus, que princípio é esse
que deu toda a sapiência
de ser tantos movimentos

e neles, tão natural
sem aulas nem professor
ter todas as matemáticas
bem dentro do esquecimento?

Não Haveria de Ser

não haveria de ser
um só universo
mas vários, retidos, desdobrados
dentro de cada um
e não haveria de ser
um tempo apenas, mas tantos
concentrados por dentro e se sobrepondo
se sublevando, uma hora mais, outra menos
não haveria de ser
o destino a lógica
de cenas concatenadas, de fluxos
marcados de um futuro óbvio
e não haveria de ser o amor
uma trama lírica
de portas se abrindo para dentro
até um porto
mas seriam também várias mortes
por onde só o amor sabe passar
não haveria de ser a vida
uma engrenagem obediente
mas exatamente
a suprema aventura
onde o passo
tanto pode sucumbir ao risco
quanto pode
dominar o espaço

16 janeiro 2006

A Falta de Direção de Tudo Indo

aqui, de onde o tempo escapa
e pesca
a falta de direção de tudo indo
inevitavelmente tudo indo
- o rastro
no passo
se desfazendo
cruzamentos sem sentido

e numa dessas nos encontramos, distraídos

a massa do amor
comeu o pão que o diabo amassou
e é essa mágoa que atravessa as ruas
dobra esquinas e transita
por mil festas tristes
é essa mágoa que atravessa o peito
de um jeito
que vai matando

e numa dessas nos vemos
dois cegos
se conhecendo

A Compreensão

a compreensão
essa domadora de sentidos

evita assassinatos
mas não poupa suicídios

Rainha

parece que aparenta
- sou disfarce, sou máscara
traída de um desejo só
demanchar a pintura
sou Cleópatra subjugada
sou escrava exuberante, gigantesca
castelos de não caber em mim

muito mais rainha a teus pés!

A Espera

te espero

dentro de mim,
esgrima silenciosa
entre a esperança e o medo

a qualquer hora a minha ansiedade pode virar pó

ouço passos se aproximando
as pernas em ponteiros de relógio
falta pouco
falta nada

é só o tempo passando
de novo

se eu desse por decreto que não vens
já cessaria a angústia, romperia o vínculo
mas não posso
não é mais a tua vinda que me prende aqui

é a esperança
que não quer sair

15 janeiro 2006

Tempo

à sombra dos dias roubados
é como o tempo vai passando
retendo tudo sem rastros
matando e ressuscitando

silêncio que nunca envelhece
nem morre nem vela - vigia
o tempo, quando não existia,
só estava atrasado, viria

não foi Deus quem criou o mundo
foi o tempo em seu desejo
que é motor do movimento
que é a gênese de tudo


nenhum no total do espaço
o esboço que a terra gira
sem memória na curvatura
sem pintura na sua arte

porque o tempo não tem começo
e futuro ele não conhece
é a própria eternidade
a toda hora em toda parte

14 janeiro 2006

A Tua Casa

na tua casa
o vidro da janela clareia o sol
o tempo é alvo
e o distanciamento de Deus, um descanso

na tua casa o cansaço
é o pão da tarefa terminada

o espaço de fora é finito
e o de dentro
abre o pulmão

Das Ausências

zunindo a noite passa resumindo
em horas outras eras refazendo
todos os ancestrais do silêncio
noutro que vem pra mim numa insônia
de Deus a latejar no peito
o timbre interminável das ausências

Estranhamento

da vida me acostumando a ser, por vezes, torno
à sensação de completo absurdo

observo
da harmonia insuspeitada de ontem
o que resta agora é o choque, a repulsa
o desencaixe das engrenagens

a roupa que visto não me serve
e não há cor neste mundo que possa supor, hoje,
a minha alma

em cada palavra escuto um enigma
em cada olhar vejo a minha escuridão
em cada passo atropelo
o caminho

você fala comigo e eu me pergunto
quem de nós está enlouquecendo


hoje é o dia do meu estranhamento com tudo!

hoje é o dia em que eu nunca nasci
e nunca vivi

13 janeiro 2006

Viagem

morre a morte, fica o tempo
vastidão sem margem

vida sobre rodas da circunferência
de um relógio

a rota em círculos

rotina da partida que é retorno


a viagem só existe
por dentro

uma odisséia
sem heroísmo

12 janeiro 2006

Outro Sol Noutro Céu

de tudo o que ouvi
só o que era meu me alcançou
de tudo o que vi
somente o que escapou da moldura
de uma cegueira infinitamente maior

porque há de ser que outros mundos
outras esferas, paisagens, detalhes
fontes inimagináveis de vida e libertação
nunca encontraram em mim
um só desejo do olhar

porque não é verdade que tudo o que existe
encontra espelho na minha alma

há um sol noutro céu que não o meu
há mares de águas desconhecidas
caminhos intocados no meu destino
e envelhecimentos que jamais ousei

porque há de ser que não existe saída para o que eu sou
e outro sol
noutro céu
será sempre a manhã que perdi
sem saber

A Contraprova das Palavras

você procura o que eu digo quando calo
você sabe que eu minto poesias
e que isso é um truque

você revira meus poemas e quer
a contraprova das palavras
você sabe que estou nua e me finjo de louca

você esfaqueou palavras
para sugar os sentidos
e não encontrou nada por dentro

você sabe que não posso fugir
que escrever é como dar um xeque-mate em você mesmo, mas,
você sabe,

sempre haverá algo que jamais descobrirás
porque, no poema,
as únicas coisas realmente minhas
são as entrelinhas

Constatação

as horas passam é por dentro
onde não se marca é que se vive
onde não se mede é que é tamanho
o que não cabe é que serve

o tempo dura o quanto eu fico
o quanto eu passo é que me atura
a sede é sempre a mesma água
a sombra morre é de luz

a voz mais funda é no silêncio
a dor mais funda não se diz
o que não tem palavra é que grita
o que não volta mais é que fica

o que é mistério é que me conhece
o que me conhece é que me engana
o que me engana é que me possui
o que me possui é que me perde

11 janeiro 2006

A Visão

estou concentrada no terrível abandono
que é a existência de cada um
e nada agora pode ser reduzido

é a visão do olho
aprisonada ao que vê
desde a cela de onde vê

estou concentrada na tragédia mais íntima
no detalhe, na partícula
na fração de um gesto, uma palavra
um silêncio
que desviou um destino

e nada agora
pode ser presumido

estou concentrada no tremendo vazio
das conquistas imaginárias
dos desejos apodrecidos, da dissolução
de uma vontade

nada agora
pode ser resumido

é a visão do olho
condenada ao que vê
desde a hora em que vê

Desengonçado

desengonçado sentimento
enguiçando tudo

tremedeira, calafrio
coração mais absurdo

do jeito que o medo ama
o amor se assusta!

10 janeiro 2006

Destinos Abandonados

hoje desisto de tantas coisas

mais uma vez deixo que pensem amanhã
meus destinos abandonados

suas sementes
promissoras manhãs de todos os dias
num gesto aqui outro ali
minha construção

- ora, te iludes!
da tua afirmação involuntária até a omissão
forjará, este dia,
um futuro em ti

sutil, como o sol,
a despeito de sua grandeza,
uma força sem surpresas

assim é que te constróis
entre feitorias imperceptíveis
e pequenos esquecimentos

Ficção

tudo é ficção até a carne, até a pele,
até o músculo

tudo é impalpável e sem verdades
até a ruga, até o suor

só o toque vai direto à alma


e a alma nunca mente

Pequenitude

forte é a pedra
que rebate o raio
queima o fogo
e derrete o gelo
sem doer

eu não sou forte
eu não sou pedra

grande é o mar
que nutre a terra
engole tempestades
e embala navios
sem cansar

eu não sou grande
eu não sou mar

Reinado

o reinado desaprendido do teu coração
passa a vida inteira assim
de ilusão em ilusão
sabe que tudo pode ter fim
- ainda não, ainda não
o tempo todo em prontidão
- agora sim, agora sim
o reinado desaprendido do teu coração

O Inferno

o inferno não deve ter nada de facas
fogueiras
o inferno deve ser doce
para atrair a boca
e no beijo queimar
feito soda cáustica

o diabo não deve empunhar
uma suástica
antes deve ser belo
para que não se possa escapar
à sedução
e dentro dela ter o mais sincero desejo
de morrer

Demarcação

não suspeitas que demarco teu olhar
não vigias, não desvendas, não desvias
de onde cerco teu mirante a me conter

não percebes, não pertences ao que és
é quase um corpo este universo que te dou
tem orientes, desesperos, tem o sol
mas não tem jeito, não tem nome, não tem par

o nosso encontro é uma terra sem lugar
não tem futuro nem medida nem razão
o teu olhar é que me inventa e me mantém
ele demarca a solidão que me possui